quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Avó

Fomos à terra da Avó.
O sino tocou. Tantas vezes a Avó perguntou "Por quem será?".
Desta vez foi pela Avó que tocou. Se fosse no tempo do Toino Marques o sino tinha dobrado e tocado.

 

Porém, já há alguns anos que o sino deixou de ser dobrado à força dos braços. Felizmente a Avó era rija e chegou ao advento electrónico.
No dia da sua despedida, um dos primeiros dias chuvosos e frios do Outono, aproveitámos, os primos, para reavivar e vivenciar as memórias de quando éramos pequenos e o Verão não tinha fim. 
Subimos pelas terras acima, como tantas vezes fizemos com a Avó, à procura das referências das nossas infâncias. Os castanheiros onde colhíamos folhas para fazermos os chapéus dos índios. As outras árvores cujos galhos eram a matéria prima para fazermos os arcos e flechas. Quase sempre queria ser dos índios. 
Lá estava também a silva das amoras silvestres, agora despida pela estação do ano, sobre a qual o Miguel, pequenito, a tentar apanhar amoras caiu e ficou preso. Claro que, eu, como prima mais velha, o ajudei a sair desse apuro. 
Procurámos alcançar com os olhos a Pedra d' Aire, que naqueles tempos parecia-nos muito longe e quase inalcançável. Hoje, sim, difícil de alcançar pela vedação entretanto colocada.
Entrámos pelo quintal da casa da tia Natércia. Aquela casa sempre nos fascinou pela grande dimensão. 
Fomos à fruta alheia. Inevitavelmente. As árvores da tia Natércia foram visadas. Inevitavelmente.
Desta vez não fomos aos figos, nêsperas e outras frutas de Verão. Fomos antes às frutas de Outono. Pela primeira vez apanhei dióspiros. Como a árvore estava esplendorosa cheia de tons laranja.



Apanhámos também castanhas. Muitos quilos dos castanheiros da família. Enfim, frutas de Outono. Período que nunca íamos à terra da Avó. 
O Outono era o período que a Avó voltava a Lisboa, muitas vezes depois do dia de finados, para regressar novamente e ansiosamente pela Primavera, quando o tempo aquecia de novo. Desta vez, ironia da vida, regressou à terra no Outono, logo a seguir aos finados...
Depois de palmilharmos terras acima, pelas Tapadas, regressámos a casa. À cozinha, espaço central e a maior divisão da casa. Era ali onde passávamos grande parte do tempo quando não estávamos a brincar na rua. Era ali que a Avó fazia as suas melhores iguarias. Os pastéis de bacalhau. O cabrito assado. A sua deliciosa tigelada. A geleia e marmelada. O seu Pão de Ló, talvez a sua pérola gastronómica mais aclamada, cuja receita e segredos me passou quando já estava debilitada.
Um dia destes tenho que testar, para ver se consigo por em prática os ensinamentos.
Na loja da casa, onde em tempos a Avó vendia vinho e outras coisas, fica o lagar, sítio que no passado já longínquo, os homens pisavam as uvas. Sempre tive fascínio por esse momento e sonhava crescer para, com altura para não me afogar, participar nessa actividade. 
Quando cresci caíram em desuso as técnicas ancestrais de pisar a uva e a Avó deixou também de produzir vinho.
Era nesse espaço, a loja, onde a Avó deixava criar mosto no vinho para depois fazer vinagre. Como eu gosto desse vinagre. Forte e de elevada acidez. Por vezes até faz chorar de tão intenso.
Chorámos por ti. As lágrimas confundiram-se com a chuva que caía. 
Porém, sei de alguém que lá em cima te esperava com um sorriso na cara. O Pai.
Até sempre.